quarta-feira, 4 de agosto de 2010

HOMENAGEM (parte 4)


O menino Dodó recebeu a notícia de que não podia nem passar na porta do Coió de Anália, muito menos, entrar e muito menos ainda, fazer budegagem em seu interior. Foi considerado persona non grata, o que não deixou de ser um desmerecimento e uma injustiça, ainda mais, levando-se em conta o propósito que espalharam para o impedimento do menino Dodó na área. Disseram e espalharam que o menino Dodó comia e não pagava. O menino Dodó não deixava por menos e retrucava à altura:

- Eu tô lá mi incomodano com isso; eu tô acustumado andar no Maria da Vovó em Salvador, vou tá lá mi incomodano com a proibição de intrá nessa ispirigueta.

Na verdade, o menino Dodô não conhecia Salvador ainda, mas ouvia as estórias de Dadai de Genésio, o Internacional, e não perdia a oportunidade de reproduzi-las de forma apimentada e com sua vivência a tonalidade de veridicidade era requentada.

Sendo um exímio zabumbeiro não lhe faltaria oportunidade e o convite veio da boca do sanfoneiro Chiquinho do Acordeão:
- Escuta aqui, ó minino! Tô na pricisão de um zabumbeiro do queixo largo, qui num seja ismoricido; nem molenga nas baquetas; qui tenha ripuxo nas munheca e batida de sino de paróquia prá podê mim acompanhá nos minuetos do acordeão, se é qui vosmicê intende do riscado.

- Eu não só intendo, cuma no capricho da modinha eu dou é dez parmo de distança prá qorquer sanfoneiro pidir pinico – disse o menino Dodó, cheio de si.

- Deixa lá qui eu gostei do teu atrivimento, mas bigorna de cabeça virada não tem primazia; minino de colo, amarelo e remelento, não pode receber ventania na caixa dus peito e o cabra só é valente inquanto num vê uma lapada de viana por riba do lombo. Tô isperano vosmicê no Armazém Estrela do Norte prá gente butá prá ferver no amola viana.

O forró do Armazém Estrela do Norte, de propriedade de Gil Mamona, que ficava onde hoje está o estabelecimento comercial de Deco, na rua Nova, era concorrido e a sociedade ipiraense participava em peso daquele esfrega-bucho sem a menor cerimônia ou preconceito e a mistura social era um congraçamento, sendo que as mocinhas da sociedade caiam no esmero dos presentes por mais humildes que fossem e tudo nos conformes da maior respeitabilidade.

O salão do Armazém Estrela do Norte estava lotado. Os que dançavam esbarravam uns nos outros; o suor escorria; as faces estavam úmidas. Lá pelas tantas, por uma porta entrou Euclides Plácido, pela outra Jonguinha, ambos deram uma volta pelo salão em busca de um par para a dança. Aproximavam-se e saiam deslizando pelo salão, cada qual com sua escolhida. Os casais retraíam-se e iam para as laterais. O sanfoneiro Chiquinho do Acordeão olhou para o zabumbeiro Dodó e disse-lhe:

- É agora filhote de Caboré qui eu quero vê se vosmicê acompanha uma sanfona virada da disgraça.

- O qui vié daí prá mim é peido de veio, vou botá tudo na garrafa – disse o zabumbeiro.

- Intonce, sigura zabumbeiro qui o capeta num leva disaforo pru inferno.

Começou com Brasileirinho; passou para ... “sonhei que estava em Moscou, dançando um” ...”atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”... “corre, corre lambretinha”... “tava o sapo cururu, tava a rã e tava a jia, tava tudo preparado pra fazer a” ... “balançando a cabeleira, um olho só procurando por um”...

Só dois casais no salão, ambos em pleno ápice. Euclides Plácido virava um peão no giro, para logo transformar-se num eixo, que fazia com que a acompanhante girasse reta e cintilante em torno de si, para isso, sustentava-a pelos braços; descia, subia, girava, como carrapeta; era sublime no passo e no deslizamento. Todos ficavam perplexos.

Jonguinha tornava-se um gigante na passada ao suspender a parceira e ao jogá-la para o alto, criava um suspense e arrancava suspiros; seus braços era uma rede protetora e de alto perfeccionismo para o enlace. O seu desempenho era gracioso e solene. Os presentes ficavam boquiabertos e pasmos.

A outra batalha era cruenta. A sanfona deslizava em mãos ágeis. O som cavalgava no dorso de um velocíssimo alazão, que deixava o vento para trás e tinha a aparência de um raio.

O som da zabumba saia inigualável e na ligeireza cadenciada. Estava grudado no lombo de uma pantera negra, que se embrenhava no tempo e rasgava o espaço sem pena nem dó, deixando só o vulto como rastro.

Por ironia do destino, a dança ninguém sabe quem ganhou, mas na peleja do som, a última batida foi da zabumba, que se apresentou tão forte e tão penetrante, o suficiente para imitar o último esforço de um coração para não deixar a vida.

A música parou. A dança esgotou-se. O sanfoneiro Chiquinho do Acordeão faleceu em pleno ato de reverência à vida. Um segundo antes, conseguiu colocar a mão no ombro do zabumbeiro Dodó e disse-lhe sua última frase:

- Não pare a zabumba, que eu estou entrando no céu.

O zabumbeiro Dodó marcou o tom grave, forte, cadenciado e triste do velório e foi assim, até o momento em que foi jogado a última pá de terra sobre o caixão em que estava Chiquinho do Acordeão. Foi uma solene despedida da zabumba para aquela sanfona, que foi brilhante nas mãos de Chiquinho do Acordeão. Foi um grande encontro.

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