quarta-feira, 14 de maio de 2025

UMA SINGELA HOMENAGEM

Uma ambulância na porta da residência. Uma equipe formada por médicos, enfermeiros, psicóloga e técnicas analisando o quadro clínico. Leta (minha irmã) levantou a mão e apontou em minha direção: “eu quero ouvir de você; é com você que estou falando: minha voz está embolada?”

 

Como respondê-la? Com palavras precisas, diretas e cartesianas que não deixassem dúvidas. Não sei, se tem que ser desse jeito! Gostaria que tivesse o formato de uma poesia; de um poema bem construído ou um xote leve e solto. Um xote das meninas para Flor e Serena, com a graciosidade de Nicole e Gabriela.

 

Como esquecer do menininho Vitinho? Jamais! Leta (Aliete) comentou que ele era “um rapazinho” e contou-me que diante de um barulho assustador, o pai do rapazinho correu para a sala e deu de cara com a maior desordem: pratos, copos, xícaras e tudo o que era de louça, quebrados pelo chão, juntamente com facas, garfos, colheres e outras coisas mais espalhadas no piso da sala. Uma pergunta: “o que foi isso?” Com uma resposta: “uma barata, pai!” A barata não morreu.

 

A resposta seria extremamente suficiente, caso utilizasse o grunhido da pequenina Serena ao ser alimentada pelos pais; no momento em que a comida é engolida, a pequenina emite um som avisando que quer mais comida em sua boca, como um filhote de passarinho no ninho, abrindo o bico para comer, impaciente e frenético, enquanto os pássaros-pais colocam a comida em sua boca.

 

Nada mais doce, belo e sublime do que essa natureza simples da vida e mesmo assim, a loucura insana dos poderosos do mundo fica querendo acabar com a simples natureza da vida deixando as baratas vivas sob escombros provocados por uma guerra nuclear (que não aconteça), pois baratas não possuem recursos para lembrar da odisseia da humanidade no planeta Terra. Seria o fim.

 

Digo isso, porque há 69 anos, Leta (Aliete) aparecia no planeta Terra para fazer uma travessia delicada, por uma estrada com ponte estreita e escorregadia. Colocou seus pés na terra e deu passos imprevistos, inseguros e singulares, ao tempo que, foi construindo com as mãos e muita sabedoria, um tapete que era costurado e alinhavado com maestria, naquilo que tem validade garantida, permanente e é frutífero para a condição humana na face da terra, pois trata-se de fazer e garantir o tempo da amizade e da solidariedade.

 

No hospital, na cama de um leito, sem restrição de visitas, olhares atentos, uma médica à posto, a paciente Aliete (Leta) fez a pergunta que estava atravessada na sua garganta: “doutora! Essa voz embolada é por causa da metástase?” Ao ouvir o sim da resposta, ela encontrou a precisão do problema, com a clara revelação do enigma, o epílogo estava definitivamente desvendado: os dias estavam contados, seriam próximos e breves. Esta era a configuração da situação.

 

Uma guerra tinha sido estabelecida no corpo, na individualidade orgânica. Um exército de células desarranjadas, desarrumadas estava em ação, foi tomando espaço e ganhando terreno. Tratava-se de uma conquista agressiva, violenta e virulenta.

 

Células indomáveis, contaminadas e deterioradas propagavam-se de forma célere e acentuada atacando por dentro e de forma silenciosa as células boas. Avançavam de forma propícia, natural e impiedosa, utilizando-se dos caminhos, canais, túneis e redes capilares, arteriais e veias iam conquistando, quebrando o sistema imunológico, mantendo posição e massacrando.

 

Células nefastas, desfiguradas, deformadas e desequilibradas atuando na conformação de um exército forte, sequioso, poderoso e esmagador estavam atuando no corpo da natureza celular fazendo um embate decisivo, de vida ou morte dentro do campo naturalmente contraditório da própria natureza. Um conflito entre células boas contra células deprimentes.

 

Uma luta encarniçada dentro do campo da natureza biológica e humana. Maldito no campo supersticioso. Severas no campo da razão humana. Contraditórias no campo das causas científicas. Um embate decisivo e mortífero. Uma luta intensa e sem limites, com enfrentamento de todo potencial da medicina, com suas possibilidades e seus limites. Leta era o centro das operações.

 

O cerco se fechava de forma embrionária, nas condições das circunstâncias, na gravidade do problema, na complexidade da situação e de forma emblemática na maturidade sistematizada dos postulados científicos deste momento. Fazia domínio de territórios orgânicos, avançava e colocava nódulos em várias partes; atingiu o cérebro e pressionou a área da fala. O estado da saúde era gravíssimo.

 

O momento da situação era muito delicado; a gravidade era de risco. A medicina não conseguia circunscrever os nódulos atacantes no seu limite, detê-los na sua expansão, ter exiguidade no seu crescimento, com posterior murchação e extermínio. Foi mais uma circunstância que serviu de acúmulo ao conhecimento científico da medicina para avanços posteriores na cura de enfermidades semelhantes.

 

A natureza é crua, fria e contraditória. É dura e difícil, mas é a vida. A fala começou a tomar a sonorização de grunhidos, como os da pequenina Serena, solicitando alimento e vida.

 

Como viver com dias contados? Sem digressões, sem lamentos, sem soberba, sem avexamento e sem estrionismo. Sem a condição inexata. Seria a brevidade dos dias um motivo para amargura, desesperos insuportáveis e intoleráveis?

 

A vontade e disposição para viver era forte. Serenidade introspectiva, querida; gostar de bom senso tolerável; paz dos justos e abnegadas sapiências. Como ter a justeza do que perece no tempo adequado e próprio? Como ajustar o tempo apropriado aos meandros de um conflito decisivo marcante?

 

Agradecemos muito à equipe médica, com a coordenação de doutora ____________ (gostaria de ter autorização para postar seu nome neste espaço), pela forte dedicação, pela atuação comprometida, pela competência na ação profissional da medicina, aplicando-a no rigor do conhecimento científico, pela generosidade e atenção de toda equipe, que teve um desempenho de excelência e dentro de um tratamento humanizado, que dignifica a vida humana.

 

Agradecemos muito ao plano de saúde _______________ (gostaria de ter autorização para colocar seu nome neste espaço), que teve um desempenho digno de nosso apreço e isso não podemos sonegar.

 

O que Aliete soube fazer e realizar com maestria e sabedoria foi amizade e nesse aspecto ela soube viver e podemos dizer que ela teve uma trajetória com passos sem turbulência, dentro de uma planificação normal e natural, sem os agravos do ódio e do rancor consumado.

 

Aliete desde quando engatinhou, deu os primeiros passos e andou na vida, com seu jeito simples e modesto, praticou e gostou de fazer amizade; utilizando-se de uma matemática simples com soma e multiplicação de amizade, esse foi um farol que iluminou a sua passagem pelo planeta Terra; fazer, costurar e alinhavar amizade foi a sua sabedoria; foi a essência do seu dom de viver, conduzido com régua e compasso nos limites de uma trajetória de vivencia simples.

 

Porta aberta, janelas escancaradas, sempre fazendo um somatório e semeando amizade, esse foi um processo de conduzir a vivência num simples percurso de juntar e aglomerar sentimentos numa boa semeadura. Era coisa dela, era a maneira dela, inata, própria da pessoa.

 

Não quero falar em epígrafe e epílogo, porque muita gente sabe e é prova disso, não só eu. Essa carta é para pessoas no campo da amizade ampla e geral, na esfera da amizade posta e eu digo:

 

Aliete mudou de endereço e está habitando no pensamento de várias pessoas amigas, sinal de que está na lembrança de cada uma delas.

 

Esse artigo é um testemunho e foi escrito com lágrimas, um choro contido e silêncio. Assina comigo, vai!

 

16 comentários:

  1. Texto inteligente,poético e lindo!!!👏👏👏

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Eu assino! Linda homenagem e sábias palavras! 🌹

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