O motoqueiro atropelou o vaqueiro, que perdeu as luvas, o gibão, o
jaleco, a capa, o chapéu, a perneira, o sapato, o cinturão, todos eles
confeccionados com couro curtido no Rio do Peixe, Umburanas e Malhador. Agoniza
à beira da morte, parece que chegou a hora da mudança do tangedor; foi-se o
vaqueiro. Vai o cavaleiro medieval com armadura de couro e entra o motoqueiro
moderno com capacete de carbono.
A moto deixou para trás o cavalo, que não precisa mais de
peitoral, sela vaqueira, arreio, pele para o lombo, rabicho, quarda-loro, cabresto,
cabeçada, guias, cilhas, capas, estribos, rédeas, tudo feito com couro. O cavalo
parece não querer mais trabalhar na busca do gado, prefere o passeio e a
cavalgada. Aposentado, o cavalo é substituído pela moto que tange a boiada.
Nos primórdios da caatinga alta e fechada, o catingueiro
desbravador embrenhava-se com suor, coragem e roupagem de couro em busca de
“boi brabo”. Era a ‘civilização do couro’ que se estabelecia na fronteira do
homem com a natureza. O homem tinha a parceria do cavalo.
Nos tempos áureos, Ipirá tinha centenas de milhares de caprinos e
bovinos, era a “Terra do Bode.” O bode promove a produção de couro, que instiga
o surgimento dos armazéns de Zé Leão, João Mamona, Euclides dos Santos,
Virgílio, Hermes Mascarenhas, capitão Diógenes, Bianor Correia, que dinamizaram
a economia local. Foi-se o tempo que suga as necessidades e ficam as quimeras.
Não há mais necessidade de vaqueiros encourados, apresentam-se motorizados e
encapuzados, são os gladiadores das pastagens que tomaram o lugar da caatinga.
A sociedade do couro agoniza a passos largos. O desmatamento da
caatinga dá vazão às clareiras e com os pastos mudam-se as necessidades e os
valores. No mercado local, o vaqueiro se foi e com ele a sua indumentária, que
tem atributos para peça de museu. A produção declina, a comercialização decai.
Foi-se o tempo. Tudo que fazia sentido deixou de fazer.
Do muito que era ainda resta pouco. Vende-se pele de bode e sola
curtidas no Malhador, bainha para facão, jalecos. Vendiam-se caminhões e
caminhonetes de selas, atualmente vendem-se quatro ou cinco selas num mês. São
poucos os que continuam fazendo selas, Nai Grande, Nai Pequeno, Dilemar, Valter
em Umburanas. A sela vaqueira é muito pesada e a australiana é leve. Por
incrível que pareça o uniforme do vaqueiro ainda tem procura, mas são poucos
que o faz e o jovem não tem interesse, preferem a carteira porque o couro não
tem cheiro. O mercado ampara certas peças íntimas para o cavalo e Célio, Neném
e Ivanildo do Rio do Peixe revendem em Minas, Sergipe e Sul da Bahia.
Mesmo com o couro agonizando, ele não perde sua importância como matéria-prima
e mesmo passando a sua fase de ampla pujança, ocorre um momento de
reestruturação, redirecionamento e repadronização dos artefatos de couro,
saindo da produção rústica para uma produção mais aperfeiçoada com melhor
acabamento e perfeição. Entramos na fase das carteiras, cintos e bolsas.
O empreendimento privado e não incentivo público buscou esse viés
para o couro no município de Ipirá e surge a fabricação de artefatos de couro,
voltado para a carteira e a coisa expande-se, prospera e estabelece-se para um
mercado amplo que atinge todo território nacional. Surgem grandes lojas na
Estrada do Feijão. Mais comércio que produção.
Entra em
cena a Prefeitura de Ipirá querendo ser ‘a salvação da lavoura’. “Vai acontecer
pela primeira vez uma feira do couro em Ipirá. Isso é um fato inédito, a
dimensão de um evento desse tipo de certa forma é uma coisa extraordinária, nós
estamos posicionando a nossa cidade dentro da cadeia produtiva do couro, Ipirá
está virando referência” disse o prefeito no rádio.
Eufórico
e embriagado pela descoberta, o poder municipal definiu, porque achou que
descobriu a vocação econômica de Ipirá: o couro. “As pessoas estão se
habituando a pensar na cidade e pensar o couro,” disse o prefeito Ademildo no
rádio. Na idéia do prefeito, Ipirá vai virar um grande
pólo do couro; segundo ele, Ipirá tem uma vocação, precisava ser despertada e
acordar no sentido de se estar construindo como uma cidade pólo. Vixe, minha
Nossa Senhora Santana! Não é que o prefeito de Ipirá descobriu que de ovo de
saqué nasce pato.
Ipirá
“Terra do Couro!” O prefeito quer mover a realidade com as idéias que saem de
sua cabeça, mesmo sem querer pensar um pouco mais. Fato que nos obriga a ter um
pouquinho de pensamento.
1.Incoerência na “Terra do Couro”:
sem matadouro no município, todo couro cru de Ipirá é clandestino, porque é
fornecido pelo abate clandestino, o poder municipal é o maior responsável por
isso. Agora, a prefeitura vai defender ou ajudar a combater o abate
clandestino?
2.Contradição na “Terra do Couro”:
todo couro que é utilizado para fazer carteiras em Ipirá é importado de
Petrolina, Juazeiro do Ceará, do interior de São Paulo e Goiás. É um couro
industrializado e sintético, nem uma tira é produzida aqui, (aqui) é só costura
(é montagem).
3.Realidade na “Terra do Couro”:
as empresas de couro em Ipirá são mais comerciais, com um número muito restrito
de produtos fabricados aqui, em Ipirá. São poucos itens para milhares
comercializados.
4.Realidade crua na “Terra do
Couro”: os artesãos do couro enfrentam uma situação bastante difícil, porque
estão descapitalizados e numa atividade que entrou em declínio. Na “Terra do
Couro” produzem, baixam o preço para vender à prazo e penhoram o prazo com
terceiros. É uma roda-viva. Desde quando, o Poder Municipal descobriu a vocação
econômica de Ipirá, qual é a garantia que vai dar a quem produz com couro? Vai
deixar os produtores nesse estado quase falencial?
5.O crime na “Terra do Couro”: se
o prefeito atual tiver plena razão no fato de que realmente Ipirá é a “Terra do
Couro”, o ex-prefeito Diomário é o maior irresponsável e incompetente gestor
que este município já teve, porque foi de uma estupidez tão grande que não
percebeu que o espaço mais apropriado para um pólo de fabricas de artefatos de
couro, em Ipirá, era entre a fábrica Paquetá e o Posto Augusto’s. Ele construiu
casas populares que seriam bem adequadas em qualquer outra área. Foi um corte
na possibilidade do desenvolvimento de Ipirá, assim impediu a boa perspectiva de
organização do setor do couro numa área nobre e apropriada.
6.A grande contradição na “Terra
do Couro”: a prefeitura empenhou-se na realização da feira do couro. Agendou
até show para ter público. Essa mesma prefeitura marcou para o dia 18 de
dezembro a transferência da feira de animais para o Parque de Exposição e não
teve a honradez de divulgar com carro de som no chiqueiro onde são vendidos os
animais atualmente, para informar, explicar e convidar compradores e produtores.
Não fizeram o menor planejamento.
7.Uma imensa contradição na “Terra
do Couro”: no convite tem “para fortalecer toda a cadeia produtiva do couro em
nossa região”, no entanto, estão fazendo uma transferência ‘à migué’ da feira
de animais, que é o alicerce para o couro; ninguém sabe de nada, nem produtor em comprador, também pudera: Ipirá é a terra do
couro e Pintadas é o pólo coureiro.
8.A lição na “Terra do Couro”: se
não ficar a lição a feira servirá para pouca coisa. Uma coisa o poder municipal
tem que compreender: tudo o que vocês fazem, vocês serão os responsáveis, até
mesmo por criarem obstáculos ao desenvolvimento de Ipirá. Até mesmo, porque são
quatro grandes lojas de couros e algumas dezenas de produções, mais algumas
dezenas de terceirizadas, por outro lado, são 6.320 propriedades rurais que
precisam produzir para vender. Onde é que está a vocação econômica de Ipirá?
Nenhum comentário:
Postar um comentário