quinta-feira, 12 de julho de 2007


Tributo a dona Alzira Barrêto. ( Parte I )

Queria construir um poema falando dessa pessoinha meiga e amiga; miudinha como um beija-flor. Precisa ser doce, belo e úmido de lágrimas. Precisa falar da tristeza e saudade que me cerca, mas também, da alegria e da vida que partiu como um pássaro ferido em busca de um sopro. Precisa ser repleto com a dimensão do amor vibrante que embalava a sua existência. Precisa ter a arte da escrita perfeita, um estilo cativante e um canto melodioso, que não deve ser apagado pelo tempo. Não pode ser de outro jeito. Preciso dizer queria, porque não passarei para o papel e só dona Alzira sabe que ele existe, aliás só nós sabemos que ele existe; está aqui no meu peito, bem grudado e lapidado, retratando este diamante duro e resistente, mas também, essa fina e delicada porcelana chinesa que foi dona Alzira, merecedora de um cuidado todo-especial.

Dona Alzira era uma catingueira valente e destemida. Quando ainda menina, invadiu um curral para defender seu pai, Chico Antõe, de uma vaca "braba" que o derrubou, sob olhares masculinos paralisados. Assim ela levou a vida enfrentando com firmeza as agruras e as dificuldades que povoam a existência das pessoas simples e humildes na caatinga. Em 1964, soube suportar o pesadelo que se abateu sobre nossa família com a prisão de seu companheiro Arnaldo Barrêto, pela ditadura militar, por razões estritamente políticas e ideais humanitários (isso não é crime, é honra), e protegeu suas crianças, blindando-as com lágrimas, afeto e uma resistência defensiva da dignidade de nossa família, para aguentar a sanha criminosa e o terrorismo ideológico odiento e raivoso que sofremos. Na década de 70, quando perdeu a sua filha Josete, rasgou o coração com um pranto constante, e isso anos à fio; até que um dia, pediu para mudarmos o retrato do lugar costumeiro, deixando de lado o choro, mas guardando a lembrança com um amor profundo, sem jamais esquece-la. No século XXI, quando acometida pelo terceiro AVC e com sérios comprometimentos para voltar a andar; trouxemos-lhe uma cadeira de rodas, recusou-se a aceita-la no mesmo instante, nem experimentou, em alguns dias estava dando novos passos. Era obstinada.

Dona Alzira era uma pessoa de poucas letras, possuía apenas o primário, mas trazia consigo uma sabedoria especial. Tinha os seus instrumentos de raciocínio bastante afiados; usava a intuição e a dedução como pouca gente é capaz de faze-lo. Possuía uma percepção psicológica apuradíssima, sem ao menos ter lido uma linha sequer sobre essa temática. Lia com os olhos e sabia como estavam passando seus familiares com um simples passar de vistas. Dizia-me: "meu filho ! cuidado com fulano, ele é falso". Mais tarde eu tinha a comprovação. E eu afirmo que era sábia, porque sendo uma pessoa simples, viveu de forma decente e honesta com seu companheiro Arnaldo, e ministraram essa lição de vida como os melhores mestres, nenhum de seus filhos anda por aí tocando fogo em índio, nem espancando e massacrando pessoas simples e trabalhadoras. Souberam educar, transmitindo dignidade, caráter e valores humanos, que muitos doutores não conseguem passar, e eles nas suas simplicidades mostraram-nos essa trilha e nela marcamos nossas passadas. Eu sou imensamente grato por isso e não tem preço que pague esse patrimônio herdado. Isso é uma riqueza inestimável e por isso somos seus devedores morais.

Se você leu até aqui, solicito encarecidamente que não faça nenhum comentário, porque o atendimento qualificado da saúde pública só melhorará se ultrapassarmos a fronteira da indignação e adentrarmos no campo da ação.

Tributo a dona Alzira Barrêto. ( Parte II )

Minha ignorância é profunda em conhecimento de medicina. O erro é humano, mas algumas vezes, suas consequências podem ser irreparáveis. Dona Alzira estava alegre e falante até o momento crucial da crise. Visualizei o momento da dor, que eu não sentia e nem compreendia, na sua fase regressiva e imaginei que fosse uma indisposição estomacal e logo, ela adormeceu com um sono leve e suave. Se eu estivesse em Cuba, viria um médico de família para atendê-la ainda em seu leito, porque com o sistema de atendimento familiar, o médico vai ao povo, mas eu estou é no Brasil e aqui, os profissionais de medicina são formatados como criaturas de elite e são raros os que se livram dessa concepção elitista e da necessidade de status social na cúpula da sociedade e o povo é que tem que ir ao seu encontro nestes clausuros que chamam de hospitais. O atendimento do nosso plano de saúde fica a 100 km de distância. Sua paciência e tranquilidade retornavam após as crises e depois veio mais uma, removemo-la para o Hospital Regional de Ipirá. O diagnóstico saiu correto, era infarto, e a ambulância veio de imediato. Neste instante, caí na real e começou meu tormento interior, pois minha negligência poderia ser fatal. Fiquei remoendo de forma constante e instigante em meu pensamento uma culpa dilacerante.

Dona Alzira era destemida e arrojada; agora estava na U.T.I. em Feira de Santana. Com sua intuição sabia perfeitamente que sua morada não era ali e ela queria arrancar toda entubação na sua determinação arretada, até mesmo, por não ter consciência da gravidade de sua situação. Fui vê-la e encontrei-a amarrada ao leito. Olhou em meus olhos e mandou eu sair, virando o seu rosto: "vá, vá embora, vá". Não queria ver tristeza em minha face atormentada. Ela era sábia em sua intuição e ali demonstrava o amor profundo, fraterno e qualificado que possuía para doar. Sabia que não daria mais para segurar a onda da vida, mas ainda tinha uma grande missão a cumprir: restava salvar seu filho. A intuição de dona Alzira entrava em rota de colisão com o pensamento cartesiano e científico que indicava um direcionamento em contrário, teria que ficar ali por 96 h. Mantinha um quadro estável e de súbito recebemos a notícia de sua saída da U.T.I. Do mesmo jeito que fui enganado no momento da sua crise, também foram enganados os aparelhos de monitoramento, médicos e enfermeiras e minha impressão é que sua intuição foi determinante nesse sentido. Veio para o apartamento do hospital com sua alegria cativante, brincou, gargalhou e esbravejou. Encontrei-me com sua sensibilidade e ela dizia, tentando descer do leito: "vou embora pra minha casa", querendo fugir do tenebroso inverno, que trás raios que rompem com a vida. Dona Alzira não me faltou em nenhum momento da vida. Salvou-me de um martírio penoso e de um remorso eterno de culpa e traição.

Dona Alzira não foi fútil, nem besta. Foi uma pessoa simples que se tornou o esteio de uma família e soube conduzi-la com correção e dignidade. Sabia assimilar e compartilhar sofrimentos e alegrias com os seus; tinha uma imensa capacidade de perdoar para amenizar a dor; possuía uma força interior gigantesca que se tornou o alicerce da sua beleza; era carinhosa e amável. Foi um exemplo de vida revigorante e de norteadora beleza para seus filhos, netos e bisnetos seguirem, porque amou plenamente a vida. Nosso amor por ela é suave e eterno, porque é de coração para coração, todos feridos, um pela lancinante dor sentida, os outros pela tristeza da ausência.
Essa é minha interpretação.

Se você leu até aqui, solicito encarecidamente que não faça nenhum comentário.

Tributo a dona Alzira Barrêto. ( Parte III )

Dona Alzira era corajosa e eu tenho que me espelhar nisso. Agora chegou a minha vez de fazer a minha confissão com a mesma sinceridade de quem vai a um confessionário, sem medo, sem mentira e sem receio de abrir a ferida, doa a quem doer. Por princípio sou favorável ao tratamento de saúde pública com qualidade, como é prerrogativa constitucional. Toda e qualquer demora de chegar até o Hospital Regional de Ipirá vem do meu íntimo mais profundo. Esse hospital deixa-me indignado; me deprime; deteriora a minha condição de cidadão; envergonha-me como gente; estraçalha-me a alma e reduz meu lado humano a nada; destrói a minha convicção humanitária e coloca-me para baixo com sua auréola de negatividade. Ali a fragilidade das pessoas é machucada e triturada.

Estive lá várias vezes, algumas acertaram e outras erraram o diagnóstico, mas sem gravidade, porque o meu grau de confiança não era total. A assistência da saúde no Hospital Regional de Ipirá é deficiente e totalmente carente nos casos mais complexos. É um monstrengo sucateado, cheio de improvisação e uma aparência interna horrorosa. É um amontoado de macas em péssimas condições, com lençóis sujos, num espaço aberto em que qualquer pessoa estranha transita livremente, disparando olhares indecifráveis sobre os doentes e a curiosidade voeja como varejeiras.

É um espaço imundo, com paredes sujas, infectada de sangue, num ambiente onde uma paciente fazia inalação e a faxineira arrastava um monte de sujeira em sua direção. Um local, onde eu pedi um vaso para a paciente cuspir e a enfermeira trouxe a cesta de lixo. É um local dirigido por pessoas sem nenhuma condição administrativa, desde quando isso aí não é quitanda, mas um hospital, e é necessário uma qualificação em administração hospitalar, e se o diretor disso aí for um médico, piora ainda mais a situação, porque demonstra a falta de capacidade e de competência que esse sujeito tem.

O funcionalismo é formado por pessoas boas, mas que não têm culpa de exercerem uma função para a qual não receberam um preparo adequado. Aí junta a incapacidade com o despreparo e o problema é gravíssimo. Uma enfermeira tem que ter uma formação superior da mesma forma que o médico, não pode haver charlatanismo. Tem que haver sensibilidade humana e qualidade no tratamento das pessoas.

É necessário uma saúde pública de qualidade, como um dever do Estado e não essa porcaria que existe no Brasil, até mesmo pelo caráter mercantilista da saúde privada. Encerro com a frase de um conhecido que é dono de um Plano de Saúde e hoje esbanja riqueza e gasta dinheiro como se fosse folha seca. Ao ser perguntado sobre sua empresa de saúde, disse: "estou arrombado, o Ministério Público obrigou-me a colocar uma paciente num hospital em Salvador e eu estou gastando 150 mil reais por mês com a U.T.I. e a desgraçada não morre". Está mais do que evidente que o atendimento da saúde pública tem que melhorar e qualificar-se.
Isso é o que eu enxergo.

Se você leu até aqui, caso queira, faça seu comentário, porque o atendimento qualificado da saúde pública só melhorará se ultrapassarmos a fronteira da indignação e adentrarmos no campo da ação.

Um comentário:

Fábio Leite disse...

Saudações Agildo!

Ainda consternado e solidário a sua dor e indignação, penso que tudo aqui pronunciado por vc é a mais pura realidade. Não encontro palavras ......lamentável a situação em que a sociedade se encontra e mais lamentável ainda é pensar que podemos contar com alguns 'camaradas' médicos e no entanto termos como resposta a frieza. Me reporto ao fato dos "profissionais de medicina, (que) são formatados como criaturas de elite e são raros os que se livram dessa concepção elitista e da necessidade de status social na cúpula da sociedade e o povo é que tem que ir ao seu encontro nestes clausuros que chamam de hospitais."

Tenho esperança que um dia isso mude e pessoas não deixem de viver por causa da negligência e vaidade daqueles que se alimentam do poder!

Grande abraço, Agildo! Força! Até a vitória!