domingo, 23 de maio de 2010

HOMENAGEM (parte 2)

De passagem para Mundo Novo, parou em Ipirá e dirigiu-se à Prefeitura Municipal, o Coronel Ludugero, acompanhado da sua esposa Filomena e do seu trio de forró. Em conversa com o prefeito foi bastante maleável:
- Seu prefeito ! O nome desse seu criado é Coronel Ludugero. Tô de passage por sua cidade e vim até vossa pessoa oferecer os préstimos de meu trio de forró, se vossa pessoa desejá.

- Já ouvi falar de vossa graça, agora de antemão, vosmicê toca em nosso terreiro se vosmicê colocá prá tocá o nosso zabumbeiro, o minino Dodô.

- Mas, seu prefeito ! Isso é impussível, prumode de meu trio já tê zabumbeiro e dos bom, e prá variá, num conheço igual.

- Se vosmicê acatá o minino Dodô como zabumbeiro, vosmicê já pode se considerá contratado prá tocá um mês no cinema Vox de Ipirá.

- Num seja pur isso, eu tava pricisano mesmo de dá um discanso no meu zabumbeiro Grilo. Tamos combinado.

O Cine e Teatro Vox ficava no Puxa, vizinho à Clínica Santa Helena e era um armazém comprido e com uma altura razoável, possuía uma tela e um palco, onde aconteciam as grandes manifestações culturais de Ipirá. A platéia levava suas cadeiras. Era comum em dias de espetáculo, homens, mulheres e crianças carregando cadeiras em direção ao cinema, sendo que, os mais ricos utilizavam-se de empregados ou agregados para fazerem tal tarefa.

O cinema estava lotado e havia muita gente do lado de fora. Quando o sanfoneiro Eutrópio puxou o fole, o coronel Ludugero soltou a voz, era o sinal que o menino Dodô esperava para dar o seu show. Foi uma apresentação memorável e o coronel Ludugero foi enfático:

- Êta zabumbeiro virado da cilibrina é esse minino Dodó, o sujeito parece qui tem uma istrovenga na mão, esse sujeito é bom todo. Amanhã, a gente vai tá aqui de novo, eu vou cantá minha música nova, que já tá no LP, que lancei no mês passado e eu já digo agora mesmo, o zabumbeiro vai ser o minino Dodó.

Era o que o público queria ouvir. Os aplausos foram demorados. Juntou mais de cinqüenta jovens e carregaram, nos ombros, o menino Dodó, saindo do Puxa, passando pelo Largo dos Malandros, chegando na rua de Cima, até a Praça da Bandeira. Todos gritando efusivamente: “Há, há, há, Dodó é o maió zabumbeiro de Ipirá”. Ninguém sabe a intenção da turma, agora, que levantaram Dodó; levantaram.

Quem adorou a apresentação do zabumbeiro Dodó foi a mulher do Coronel Ludugero, a dona Filomena, que não perdeu tempo em elogiar o zabumbeiro, logo na primeira oportunidade que tiveram sem ninguém por perto, e dona Filomena foi dizendo:

- Seu zabumbeiro ! Vosmicê é brasa batendo no zabumba. Será qui vosmicê é fogo batendo em outras coisa ?

- Dona ! eu sou fogo batendo zabumba, batendo lata, batendo tambor de couro de jibóia, batendo quarque coisa, em tudo que eu batê eu sou fogo – disse Dodó.

- Que bom ! quando o coroné Ludu tivé insaiano com o sanfoneiro Eutrópio, vosmicê vai trená in separado no meu quarto, quero vê se vosmicê é bom de batê o zabumba num triângulo, sem sanfoneiro e cantor pur perto.

- Num tô intendendo a Dona !

- Oh, meu pai de chiqueiro ! Quando vosmicê se adentrá no meu quarto eu vou mostrá um triângulo que eu tenho prá dá a vosmicê, e vosmicê pode batê nele com o pau do zabumba a vontade.

- Quis cunversa istraviada é essa qui a Dona tem. Eu vou dizê prá a Dona assuntá qui uma muié qui zabumbeiro num deve assanhá é muié de cantô, prumode de qui quando cantô toma uma rebordoza ele perde a voz e o zabumbeiro perde a batida e a mão endurece e ele num pode pegá na baqueta.

Dois dias atrás, tinha acontecido um fato muito comentado em Ipirá: o proprietário da Cacimba, Vicente Lima, tinha cortado o rabo de um jegue que vinha comendo sua roça de milho, sem que o dono do mesmo tomasse nenhuma providência, mesmo depois de uma série de reclamações feita pelo dono da roça.

Vicente Lima estava sentado na primeira fila do Cine Vox, esperando a apresentação do Coronel Ludugero, aos poucos, todos os lugares para as cadeiras estavam ocupados e não havia mais lugar para ninguém, sendo que, a apresentação da noite podia começar e lá pelas tantas, o coronel Ludugero apresentou sua música nova:
“ EU NÃO QUERO PAGAMENTO NASCIMENTO; EU SÓ QUERO O RABO DO JUMENTO”.

Foi o suficiente para Vicente Lima levantar exasperado e aos berros ia apontando para o Coronel Ludugero e bradando, ao tempo que ia saindo do cinema:
- Quem é você seu cantor de merda, para atingir a honra das pessoas de bem com sua música de merda !

Retirando-se do cinema, Vicente Lima foi direto para a casa do pai do menino Dodó, seu Pijú, acordando-o fez a sua reclamação:
- Eu vim até a sua residência, a esta hora da noite, para fazer uma queixa de seu filho, que está coloiado com um cantor de merda e ele ensinou a esse cantor uma maneira de desonrar a honra de um homem de bem, como a minha pessoa. Foi a maior humilhação que uma pessoa pode passar e o cabeça dessa ofensa foi seu filho.

- Quem ? O Ramiro ?

- Não, o Dodó que bate zabumba.

- Eu peço desculpas em nome de meu respeito por vosmicê, e pode ter certeza de quando ele entrar aqui ele vai receber a lição que está pur merecê – disse seu Pijú, o pai de Dodó.

O pai de Dodó deixou o fifó aceso em uma meia-parede que tinha na sala de visita, quando Dodó chegou, bem mais tarde, ele pegou o cinturão e deu duas corriadas de leve em Dodó, que saltou e soltou o berreiro:
- Uai, uai, buá, buá ! eu não fiz nada. O que foi que eu fiz ?

- Isso é prá vosmicê aprendê a respeitá as pessoas e não fazer mais o que fez com seu Vicente Lima, um homem direito e de bem. De hoje em diante não quero vê vosmicê batendo nesse tal de zabumba, nem em lata, nem acumpanhando esses forasteiro qui aparece em Ipirá. Se eu pegá vosmicê com isso eu vou te dá uma surra daquelas.

No outro dia, o menino Dodó saiu de casa o mais cedo possível, foi direto para a pensão São Paulo, onde estava o Coronel Ludugero, de forma que ninguém percebesse a sua presença, entrou no hotel de forma sorrateira e nas pontas dos pés, quando ouviu o berreiro da voz grave e enlouquecida do Coronel Ludugero, que ficou bravo depois de ouvir a voz baixa do seu zabumbeiro Grilo no seu ouvido:

- Coronel ! Eu não sei se devo dizê, mas eu vou dizê, prumode de que eu tenho qui dizê, prumode de vosmicê ficá de orelha impé, cum esse zabumbeiro de nome Dodó, que ele ta tumano saliença com sua muié Filomena.

- EU MATO ESSE DISGRAÇADO ! EU TENHO ESSA PEIXEIRA AFIADA É PRÁ INFIÁ NO BUCHO DE UM DISGRAÇADO DESSE E ARRANCÁ O FATO PELA VENTA. QUANDO ESSE ZABUMBEIRO DODÓ CHEGÁ EU VOU ISFOLÁ ELE TODINHO, EU VOU ARRANCÁ O COURO DELE E ISPICHAR COMO SE ISPICHA COURO DE BODE.

Quando o menino Dodô ouviu esses berros do Coronel Ludugero, deu uma tremedeira nas pernas, e quando ele olhou pela greta da porta e viu o tamanho da peixeira e sentiu que não tinha mais perna, até hoje, não sabe como conseguiu sumir daquela pensão, ou melhor de Ipirá. Ninguém dava notícias do menino Dodô, ninguém o viu e ninguém sabia onde ele estava.

Um mês depois, surgiu a noticia pela boca de um roceiro que plantava aimpim atrás do Monte Alto, que havia um rapaz, andando na região. Uma comitiva foi até lá para uma averiguação e constataram que era o menino Dodó:
- Vamos para casa minino Dodó. Como vosmicê conseguiu viver aqui ? Comia o que ? – indagava um membro da comitiva.

- Eu tô vivendo aqui cum as onça. Eu tomo leite de onça. Eu como as comida que as onça mim dá. E elas já tá perto de chegá.

A comitiva já estava assustada e um deles foi dizendo:
- Minino Dodó ! Vamos imbora daqui o mais rápido possíve. Vombora minino Dodó, antes qui as onça chegue.

- Daqui eu não saio, eu vou viver cum as onça. Se eu num pudê batê zabumba, eu vou ficá aqui e morá cum as onça.

Acertaram tudo. O menino Dodó retornou para casa, pediu a benção de seu pai, que deu sua permissão para que ele batesse zabumba. A partir daí, o povo de Ipirá passou a ter certeza da existência de onça na gruta que fica atrás do Monte Alto e até hoje acredita-se nisso. O menino Dodó sobreviveu chupando azedinha, quixaba e umbu.

O Coronel Ludugero tinha ido embora e dois anos depois mandou uma carta pedindo desculpas ao menino Dodó, por ter acreditado no zabumbeiro Grilo, que mais tarde ele comprovou que era um lacaio, um elemento desclassificado e mentiroso, que por ter ficado com inveja do menino Dodô, inventou toda aquela estória da ousadia com dona Filomena, coisa que nunca aconteceu. O Coronel Ludugero mandou um dinheiro para o menino Dodó viajar urgentemente para Salvador e juntar-se ao grupo para viajarem de avião para o Rio de Janeiro. O menino Dodô ficou alegre e se entusiasmou com a proposta recebida, mas antes tinha que se despedir das delícias de Ipirá e foi logo dizendo aos amigos:
- Hoje, eu não vou não. Eu vou daqui a oito dias; primeiro eu vou tomá é banho no tanque Veio; vou me despedí das onça na gruta do Monte Alto; vou buscá umbu nus Cágados; vou comê jaca na Caboronga. Na semana que vem eu viajo.

Cinco dias depois de ter recebido a carta, Dodó e muitas pessoas em Ipirá, ouvindo o noticiário da Rádio Sociedade da Bahia, tomaram conhecimento de uma triste notícia, desde quando, tinha acontecido um grave acidente aéreo com um avião que decolou em Salvador com destino ao Rio de Janeiro, e neste acidente faleceu o cantor Coronel Ludugero, sua esposa Filomena, o sanfoneiro Eutrópio, o tocador de triângulo Orelhudo e só escapou o zabumbeiro, porque tinha perdido o vôo.

Um comentário:

Lilian Simões disse...

Bravo!!Simplesmente emocionante!!