sábado, 25 de fevereiro de 2012

HOMENAGEM. (Parte 15)



Pense numa pessoa boa: Dodó da Zabumba. Imagine uma pessoa sem maldade: o zabumbeiro Dodó. Eu começo com a escrita dessa devida maneira para justificar o esquecimento que sofre esse grande tocador de zabumba neste causo, porque uma coisa que ele faz questão de evidenciar e proclamar são os nomes de todos os sanfoneiros, com os quais ele fez parceria, mas neste episódio, ele espremeu a memória, como se torce roupa lavada e não conseguiu lembrar o nome do sanfoneiro, assim sendo, você pode até pensar em ingratidão, mas eu discordo e ratifico: o zabumbeiro Dodó esqueceu o nome deste sanfoneiro porque é um homem de coração grandioso.



Foram seis meses de forró no Nordeste da Bahia. A última apresentação foi em Cícero Dantas e o trio forrozeiro já estava na boca do povo, sendo que o zabumbeiro era a atração que agradava a todos. O sanfoneiro não andava muito satisfeito com os elogios que ouvia e na medida em que enfatizavam o toque magistral da zabumba, ele pensava: “esse zabumbeiro é meia-baquete, tenho que trocá por outro.”



Quando o trio recebeu o dinheiro, sentaram numa mesa de bar e começaram a tomar cerveja e jogar conversa fora. O sanfoneiro dirigindo-se ao zabumbeiro falou:


- Ô Dodó! Tu não acha arriscado ficá cum esse dinheiro aí no bolso, é uma hora qui o bolso ta furado e tu perde esse dinheiro, aí vai fazê falta.



- Qui bolso furado, sanfoneiro! Meus bolso ta mais forte do que os cofre do Banco Econômico de Ipirá.



- Não me leve a mal! Eu tô falando assim é prumode de aparecê um ladrão e passá a mão nesse dinheiro e tu nem apercebê, quando tu for vê já ficou sem ele. Num é nada não, mas si isso acontecer, Deus o livre, eu te empresto do meu, adispois a gente disconta nas festa qui a gente tocá.



- Tu ta pur fora, sanfoneiro! Se aparecer um gatuno, eu mi atraco cum ele, que só vai ficá os pedaço, mas ele não surrupia uma merreca.



- Entenda o que eu quero dizê! Eu quero dizê é qui dinheiro tem qui ficá no lugá mais siguro. Ta nós três aqui, a gente num conhece ninguém; se o dinheiro tive num lugá só ele ta mais garantido.



- Ele aqui nesse bolso, ele ta bem guardado, sanfoneiro, nem cachorro leprento mete a mão.



- Eu quero dizê o siguinte: é si esse amigo sanfoneiro pricisá do dinheiro do amigo zabumbeiro imprestado, o amigo zabumbeiro não mi impresta não? Quando chegá im Ipirá eu lhe dou.



- Um amigo é prá ajudá o outro – falou Dodó, ao tempo que metia a mão no bolso e entregava todo dinheiro ao sanfoneiro.



Na região do Nordeste da Bahia, foi a última vez que o menino Dodô viu o sanfoneiro. Sem um tostão no bolso, o zabumbeiro achou de recorrer ao contratante da festa, que lhe disse:


- Eu já paguei a vocês, não devo nada, agora eu posso dá um conselho a você e conselho sempre é coisa boa para quem sabe receber de coração agradecido, vá para o posto de gasolina Texaco, que fica ali na entrada da cidade e peça uma carona para Feira de Santana, que é fácil conseguir.



Dois dias no bote, parecendo cobra na espreita do rato e, nada. Comia pão conseguido a muito custo, até que apareceu um caminhão carregado de carvão, só com o motorista na boléia.


- O senhor vai pra onde?



- Vou pra Feira de Santana.



- O senhor me dá uma carona? Eu sou duas pessoa, eu e minha zabumba.



- Suba aí na carroceria e se ajeite aí, qui eu já vou siguí viaje.



O zabumbeiro fez o sinal da cruz, agradeceu a Nossa Senhora e aconchegou-se em cima da carroceria, naquele instante imaginou-se passeando no confortável automóvel “Aero Wiles” de seu Júlio. Estrada de chão. A cada buraco ultrapassado, um saco de carvão caía em sua cabeça, ele ajeitava o saco; quando o carro passava numa costela de vaca, a nuvem de carvão encobria o zabumbeiro; quando o caminhão freava bruscamente, o pó de carvão vinha todo para cima do menino Dodó. Foi uma viagem longa, difícil e sofrida. Estava encharcado de pó de preto, o cabelo, nariz, boca, ouvidos, dedos e unhas, nada escapava.



O caminhão foi parar na padaria Boa Sorte, no Sobradinho. O zabumbeiro saltou, agradeceu ao motorista e agora tinha que ir andando até o Hotel Caroá, onde ficava hospedado Jacinto Limeira, o Homem do Sapato Branco, para narrar sua situação, na certeza de que teria um ombro amigo para dar anteparo. Quando passava pelas ruas, era alvo de sorrateiras piadas:


- Olha um pau-de-fumo andando!



- Ô picolé de betume!



- Abriram a porta do inferno e deram folga ao diabo.



- Vem vê o tribuzu do Tomba.



- Tu ta fazeno o que aqui, Buziguim de Oxossi?



- Vai procurá tua friguisia, Zumbi!



O zabumbeiro Dodó passava pelo seu calvário; sentia a força do desprezo humano. Era uma humilhação que batia no fundo da alma e a insensibilidade das pessoas massacravam-no sem dó nem piedade. Chacoteado, ferido na alma e no coração, mas mantendo o semblante erguido e a dignidade preservada. Ia passando e a zombaria acompanhando-o. Quando chegou ao Hotel foi colocado para fora, como um cachorro sem-guia:


- Aqui não se hospeda nenhum Jacinto! Vai saindo, prá fora vira-lata, vai, vai.



As pessoas riam querendo e sem querer. O zabumbeiro estava determinado, sabia que o Homem do Sapato Branco estava em Feira e se hospedava naquele hotel. Esperou e não foi em vão, pela manhã, apareceu o Jacinto tão esperado, que tinha terminado uma apresentação de forró. Dodó foi em sua direção:


- Seu Jacinto! Eu sou Dodó da Zabumba.



Jacinto Limeira, o Homem do Sapato Branco, sentiu algo próximo naquela voz, olhou e viu um distanciamento muito grande naquela imagem e disse:


- Essa cidade está cheia de trambiqueiro querendo enganar as pessoas, logo não ta vendo que uma figura encardida da sua marca não é o grande Dodó da Zabumba – nem terminou de pronunciar, deu as costas e caminhou.



- Seu Jacinto! Eu sei que o senhor é um homem de coração generoso, não me leve a mau, mim dá dois réis para eu tomá um banho.



Jacinto Limeira parou, meteu a mão no bolso, tirou cinco cruzeiros, entregou ao desconhecido e disse:


- Toma cinco cruzeiros, vá embora e não me aborreça.



Dodó foi para o Tomba, tomou um banho que durou seis horas, comprou um cento de pão e dez litros de refresco de maracujá. Bufou à vontade para expelir aquele vento preto que estava dentro de seu corpo. Revitalizado partiu para o hotel. Quando chegou, observou que Jacinto Limeira estava sentado em um sofá da recepção conversando com um grupo de empresários, mesmo assim ele entrou e foi na direção do mesmo, que, ao avistá-lo, levantou-se e veio ao seu encontro:


- Meu amigo, Dodó da Zabumba! Que honra recebê-lo aqui em meu hotel. Ainda, ontem, apareceu um tribufeiro aqui, querendo se passar por sua pessoa, eu botei ele pra fugir daqui. Temos que ter muito cuidado nessa Feira de Santana, que é cheia de gente escopeteira. Mas, que prazer em ver o grande amigo! Senta aqui conosco.



Quando o funcionário do hotel chegou à recepção e viu aquele sujeito sentado no meio daqueles graúdos, veio em sua direção para solicitar que ele saísse do ambiente, ao que foi retrucado por Jacinto:


- Você sabe quem é esse? Esse aí é o grande zabumbeiro Dodó da Zabumba.



- Seu Jacinto! Esse discarado me botou pra fora daqui do hotel, ontem.



- O quê? – indagou Jacinto, que olhando para o funcionário, foi dizendo - Considere-se demitido agora mesmo.



- Seu Jacinto! Eu peço que o senhor faça uma reconsideração e deixe ele aí no emprego, que ele precisa.



- Ta certo, Zabumbeiro Dodó! Ele vai ficar porque você pediu – deu um sinal para o funcionário afastar-se – Dodó da Zabumba! Você vai fazer uma temporada de show comigo aqui em Feira e você vai ficar hospedado aqui no meu hotel.



Jacinto deu uma ordem para que todos os funcionários fossem reunidos no salão do restaurante do hotel e disse-lhes:


- Esse aqui é o grande Dodó da Zabumba, ele tem que ser tratado aqui igualmente ao dono do hotel.



Dodó sentava nas confortáveis poltronas da recepção, chamava o funcionário que ele salvou o emprego e dizia:


- Traga uma cerveja bem gelada.



- Sim, senhor! Seu Dodó da Zabumba!



- Essa que você trouxe ta gelada, mas leve essa e traga uma que seja véu de noiva, você sabe cuma é.



- Sim, senhor! Seu Dodó da Zabumba!



Depois de um show no Feira Tênis Clube, Dodó apaixonou-se e convidou uma graciosa morena para ir até o hotel:


- Você é um pedaço de mal caminho e eu vou caminhá pra sempre no caminho da perdição. Eu to cum uma suíte lá no Hotel Caroá à sua espera minha paixão.



- Onde? No Hotel Caroá! Meu noivo trabalha lá e hoje ele está fazendo hora extra – disse o Pedaço de Mau Caminho.



- Sim! Mas ele já levou você na copa do hotel?



- Não.



- Eu estou levando você é para a suíte e lá é bem parecido com o céu.



Quando o funcionário viu o zabumbeiro com aquela mulheraça conhecida, tomou um susto e seu sangue gelou, o zabumbeiro disse-lhe sem muito estardalhaço:


- Leve uma champanhe até a suíte e não esqueça de levar três cálices, eu faço questão de brindar com sua pessoa.



- Sim, senhor! Seu Dodó da Zabumba!



Jacinto Limeira vendeu o hotel e voltou para São Paulo. O zabumbeiro Dodô foi para Ipirá e não falou mais com o sanfoneiro, que fazia questão de comentar, pela cidade, que o zabumbeiro Dodó não tocava nada. O zabumbeiro Dodó perdoou-lhe, mesmo sem receber o dinheiro emprestado e vida que segue.

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