segunda-feira, 3 de novembro de 2008

PERIPÉCIAS DE CAMPANHA 1.


Estas são narrativas sobre a minha participação na campanha 08. Em visita eleitoral pela periferia de Ipirá, adentrei em uma casa popular e humilde, que se configurava por uma sala conjugada com a cozinha; dois quartos laterais; um sofá encardido; quatro cadeiras de madeira e um televisor velho, pequeno e preto e branco, em cima de uma pequena mesa retangular. Um quadro de Coração de Jesus, feito em papelão, sem moldura, enfeitava a parede e indicava a ambiência de fé.

Uma trabalhadora negra com aparência de meia-idade, nem que não seja, mas com estas características impostas e afirmadas pela vida dificultosa e áspera, fazia a cortesia da boa recepção. Apresentava um rosto enrugado, desgastado e maltratado pelo dia-a-dia. A sua voz era um lamento curto e suplicante, cada palavra e todas as frases eram emblematicamente uma embolada ríspida na tentativa de fazer aparecer o "salvador da situação" e dava para perceber que ela pressentia no político uma figura santificada ou um santo do pau-ôco, na forma em que olhava nos olhos após pronunciar: "esses pulítico não dá nada a ninguém, só qué cumê. Eu só ajudo a quem mi ajudá". Seus cabelos estavam escondidos por uma toca de meia que ajudava o rosto a ter um semblante arredondado e a boca esquivava ao transmitir um sentimento que refletia uma vida penosa "acordo 5 h da manhã e vorto 7 h da noite, só vivo no cansaço, já não aguento mais", demonstrando que estava encurralada pela vida, citava: "Nego toma conta de mãe enquanto eu vou para o serviço".

Nego era um jovem da comunidade que estava sentado na cadeira localizada atrás da porta. Olhava sempre para o chão, enquanto mexia as pernas sem parar. Nego retinha as palavras e só balançava a cabeça para uma resposta negativa ou positiva quando alguém dirigia-lhe alguma pergunta. Segurava os santinhos de propaganda política com desconfiança e certa indiferença, pois transparecia que não sabia das coisas, mas sentia os estranhos no seu gueto.

A negra trabalhadora falou e indicou com o queixo "mãe taí no quarto, sentindo uma dor de dá pena, a coitada num tá guentano mais, entra aí prá vê ela". O quarto não tinha porta, um pano fino e barato servia de tampão. Era um quarto extremamente singelo. Uma luz turva emitia sombras. Tinha uma cama engolida por quatro paredes. Uma velha senhora deitada e enrolada por um cobertor felpudo e marron, gemia e balbuciava. Apesar dos pesares era uma fisionomia branda e amistosa, que parecia ter expelido os últimos ressentimentos profundos que povoam a alma humana. Transpirava uma áurea de tranquilidade e ternura, mesmo impregnada de dores. Ansiava por um ato de caridade salvadora ou por uma ajuda insofismável, sendo que, aquela era a oportunidade de sobressair-se do mundo do desprezo e das possibilidades restritas. Queria pouco e pretendia quase nada, para abrandar a sua agonia em meio a desesperos tempestuosos, quando pediu bem baixinho: "ô meu patrão ! eu tô aqui nu sufrimento, mi dá um dinheirim".

Estava perambulando pelo REINO DA NECESSIDADE. Ali estava a realidade crua e na ferida maior. É uma situação de precisão continuada de comida, de hospital, de remédio, de conforto, de esperança, de confiança, de quase tudo.. O querer é um acessório de quem vive apertado, jamais seria recalcitrante. É nesta chaga aberta que o politiqueiro pilantra e o traficante endinheirado plantam suas hortas. A comunidade só se torna visível neste período, que é a época de se fazer a política eleitoral.

Quem se hospeda nas correntes do REINO DA NECESSIDADE ingere muito bem das relações promíscuas entre os humanos. Sabe que esta e outras visitas só ocorriam naquele preciso instante e que, só daqui a quatro anos terá outra e outras incidências daquelas. Naturalmente as pessoas desse reino são personagens que não conseguem ultrapassar os limites que as cravejam e, atravessar a ponte para o patamar da cidadania é um transcurso meticuloso e cheio de tentações. Existe em cada esquina da vida humana em condições subumanas, um monte de vermes e pilantras que sugam e regozijam do fomento do reino cravando suas ventosas nesses tecidos para retirarem a seiva suculenta que lhes garantem o bem-estar pessoal, realimentado-o de quatro em quatro anos.

A política está em todo canto da casa: no lixo, na ração do meio-dia; na conversa com a vizinha. Falta o entendimento da verdadeira serventia da política, de que forma ela se dá no cotidiano e de como ser participante, não só na chapa quente do pula-pula. A política é um aprendizado para a vida, se em Ipirá não é assim, o povo vai ficar só na pirraça e não se chega nem na indignação, quanto mais na mudança. Se as pessoas forem capazes de perceber os problemas do bairro, da cidade, da vida humana, já é um bom começo para se pensar em mudar as coisas e além de ser pessoa virar cidadão. Um jeito de virar o jogo é achar que o seu mais ilustre empregado (o prefeito) tem que melhorar o bairro, o atendimento do hospital e ofertar casas a quem não tem e por aí vai.

Se for possível quantificar o REINO DA NECESSIDADE é importante que se coloque os números de Ipirá. CLASSE DE RENDIMENTOS MENSAL = SALÁRIO MÍNIMO.
è SEM RENDIMENTO = 49,2 %
=>ATÉ UM SALÁRIO = 34,6 %
==>DE UM A DOIS SALARIOS = 10,3 %
CONCLUSÃO = 94,1 % da população de Ipirá vive do bico a dois salários mínimo. Essa é minha Ipirá.

2 comentários:

Bezourão disse...

Camarada,
Seu artigo´é de início, o retrato da nossa gente.
Até quando??????????????????????
ACORDA IPIRÁ.

Lilian Simões disse...

Não levando em consideração o relógio do blog que nunca é exato eu só sei que estou aki perto da meia noite lendo seu post e o silêncio que no momento reina absoluto tá sendo crucial para que eu medite sobre todas as suas palavras.Sei que irão comigo para o travesseiro,lá é o melhor lugar para tentarmos descobrir quem somos e para onde realmente vamos.
Um abraço fraterno. www.liliansimoes.com.br