sábado, 8 de maio de 2010

HOMENAGEM (parte 1)


O Circo Bartolo estava na cidade de Ipirá, fincado na Praça da Bandeira, no fundo da Igreja, já fazia mais de um mês que agitava a localidade, sempre com lotação completa para ver o palhaço Lamparina e a bailarina Zene, com saia curta, que era a que mais vendia fotos àquela platéia alegre, encantada e cativa, que se aglomerava no galinheiro e nas cadeiras para deliciar-se daqueles arroubos circenses.

Aquele domingo seria um dia especial, com uma atração de grande peso, aguardada e esperada ansiosamente por toda população, que há dias não tinha outro assunto. Seria a apresentação do já afamado sanfoneiro Luiz Gonzaga, uma estirpe na arte de tocar o oito baixo, isso só para falar sinfonicamente. Ipirá estava em festa aguardada e na expectativa da majestosa apresentação.

No início da tarde, chegou à cidade o pau-de-arara de seu Quincas, um GMC azul, com cara chapada, que funcionava por pressão de uma manivela dando corda para poder sair do lugar. Parou em frente à pensão de Tomás Aquino Ferreira, que ficava na Praça da Bandeira, da boléia saltou um sujeito com rosto arredondado, com um chapéu de couro na cabeça, era um pouco baixo e troncudo, carregava uma embalagem de sanfona nos ombros, era Luiz Gonzaga. Da carroceria saltaram mais dois elementos que formavam o trio e mais cinco passageiros que não tinham nada a ver com a comitiva ilustre.

Dentro da pensão, foram bem recepcionados por seu Tomaz Aquino Ferreira, o proprietário, e pelas autoridades que se acotovelavam para conhecer e prosear com aquele monstro sagrado da música nordestina, da mesma forma, os empregados da pensão queriam matar a curiosidade e chegar perto para ver a estrela do forró, que estava ali, na sala, esperando o almoço, que foi sair quase quatro horas da tarde. A mais entusiasmada era a negra Nastácia, que era a cozinheira titular e possuía uma mão leve no sal e apimentada no tempero, com fama que ultrapassava os limites da cidade. Na hora do almoço-janta, a cozinheira Nastácia fez questão de levar a gamela de bode acebolado e fermentado com seu tempero para a mesa. Foi logo dizendo:

- Boas tarde que anoitece seu Gonzagão; eu sou Nastácia, essa sua criada, qui ta aqui prá atendê o qui vosmicê achá de querê. Tô numa aligria disgramada de cunhecê vosmicê.

- Eu também digo o mesmo prá vossa pessoa – disse Luiz Gonzaga sorrindo.

- Sabe cuma é, num é, seu Gonzagão ! eu assunto muito as suas melodia, e eu até vou dizê aqui prá vosmicê, qui me aderreto qui nem uma égua quando ta tomano banho, quando assunto aquela modinha da Asa Branca, qui vosmicê canta, chega mim dá um apetrecho no coração.

Quando a negra Nastácia começava a conversar só parava quando a língua fazia calo e ela monopolizando a atenção perguntando ao grande mestre do baião, o Gonzagão:
- Vosmicê num vai cumê não ? É prumode de não ter apreciado os meu tempero ?

- Não é isso não, madame ! Comida ! Eu só quero dá umas beliscadas.

Na verdade, o mestre Gonzagão não almoçou, porque a negra Nastácia não deixou, com seu falatório, enquanto isso, Chico Paraibano, o zabumbeiro, comeu pelo trio; pelo trio não, por uma orquestra completa e das grandes, ao ponto de sua barriga ficar com um volume que parecia de mulher parideira de quadrigêmeos. Faltando meia hora para a apresentação a dor no pé da barriga colocou Chico Paraibano de custipio e o bicho ficou travado. O mestre Luiz Gonzaga indagou ?

- Aqui, neste lugarejo, num tem um zabumbeiro prá ocupá o posto de Chico Paraíba não?

- Pru estas bandas, olhando dez léguas prá riba e o mesmo tanto pras banda de baixo, vosmicê num vai dá de testa com esse troço não, agora se vosmicê tiver na pricisão, pode levá uns minino qui leva o dia todo fazeno batucada em lata, aqui nos fundo da pensão – respondeu a negra Nastácia.

- Corre e traz esse menino sem perder tempo, que não tem outro jeito, eu já vi que quem não tem cachorro caça com gato.

O circo Bartolo estava com lotação total. Os homens estavam de paletó de linho ou casemira, gravata alinhada e calça engomada. As mulheres de chapéus e com os melhores vestidos. Os meninos usando calça-curta, meias e sapatos. Todos impecáveis, sentados nas cadeiras. Os mais remediados apresentavam a domingueira de forma vistosa. Era um dia de gala na cidade de Ipirá.

Quando as cortinas do palco abriram, o apresentador do circo, com voz vistosa, chamou o mestre da sanfona no Nordeste, o Gonzagão, a multidão recebeu-o sob auspiciosos aplausos e de pé. Chamou o homem do triângulo de ouro, Zeca de Caruaru, que foi bastante aplaudido, depois chamou a revelação do zabumba, entrou Dodó de Pijú. O silêncio foi espantoso. O apresentador tentou animar o ambiente: “vamos aplaudir a grande revelação do zabumba no Nordeste do Brasil, o pequeno gigante do zabumba”, mas não disse o nome.

Até então, a platéia nada entendia, suspirava e estava contagiada com a expectativa de uma outra presença, de um desconhecido, de uma pessoa nunca vista, mas do momento em que entrou o zabumbeiro, até o instante em perceber quem era realmente, levou uma eternidade em curto espaço de tempo, até que uma voz alta quebrou o silêncio:
- Oxente! É Dodó de Pijú !

A platéia não entendia nada. Todos estavam perplexos e não compreendiam o porque de Dodó está naquele palco, quando seu lugar seria no galinheiro do circo e não com as estrelas, ele só iria atrapalhar. Um gaiato gritou:
- Procura teu lugar Dodó ! tu não ta veno que ai num tem pavio pra teu fifó.

O mestre Gonzagão puxou o fole e tirou um som em dó; o triângulo entrou no ritmo; Dodó jogou a baqueta para cima, para pegar no ar e dar o repique, a baqueta caiu, Dodó tentou agachar, o peso do zabumba puxou-o para baixo, desequilibrado, caiu. A platéia não agüentou. Em peso, o público presente soltou uma risada estridente e a galhofaria tomou conta do recinto:

- Sai daí pé rachado!
- Cai fora perebento ! vai bater em outra freguesia.

Todos riam. A algazarra era total. Foi uma das maiores humilhações já presenciada nesta terra. O menino Dodó estava acabrunhado em meio à barulheira infernal e, neste instante, comentou com o mestre Lua:

- Mestre Luís ! Eu não sei batê nesse troço istrombólico não.

- Oh, menino, levanta ! Faça de conta que isso aí é uma lata. Dê uma batida, como você bate numa lata, mostra pra essa gente que não tem batedô de lata melhor do que você. Vamos lá menino.

Antes que o mestre Lua arrumasse a sanfona, o menino Dodó deu a primeira batida; mestre Lua apressou-se e correu atrás, acompanhou o ritmo do zabumba e encaixou a melodia. Na segunda música, o menino Dodó arremessou o zabumba e as baquetas para cima, com uma força que a altura atingida chegou perto da empanada do circo, as baquetas, como se estivessem conduzidas por mãos invisíveis, continuaram batendo no zabumba, que descia em queda livre, o menino Dodó aparou-o na cabeça e deu um repique magistral; era assim que ele fazia com as latas.

A platéia ficou muda. O forró rompia e causava impacto no silêncio. Mestre Lua estava emocionado e inspirado, tanto que, de improviso, criou uma letra e uma música para aquele inesquecível momento:

“Ta danado de bom, ta danado de bom; esse forró, ta danado de bom; esse zabumbeiro, ta danado de bom, ta danado de bom, meu senhor, ta danado de bom”.

A platéia foi ao delírio. Asa Branca foi apresentada e cantada de uma forma nunca vista, só voz e marcação do zabumba. Em pé, todos aplaudiam o espetáculo. Mestre Lua esbanjava maestria, mudava de música e sem parar o som, seguia improvisando:

- Êta zabumbeiro avexado ! segura o tom, zabumbeiro, que a sanfona não agüenta a correria; “mas ta danado de bom, ta danado de bom”. Êta zabumbeiro da gota serena, o menino ta tinindo, “ta danado de bom, o menino ta danado de bom, ta danado de bom”.

A última frase do mestre Lua, tocou no fundo da alma dos presentes. Foi uma lição. O silêncio era absoluto e o mestre profetizou:
- Vocês vão ter que engolir esse menino zabumbeiro.

Os aplausos não paravam, assim surgia o menino que se apegou à arte do zabumba e que este ano completa 58 anos de carreira, no dia 20 de junho de 1952.

11 comentários:

Ivo Barretto disse...

Belíssima homenagem ao amigo zabumbeiro Dodó caro Agildo.
Parabéns.

Unknown disse...

Éhhh. Que comedia...Mas no final sairam todos felizes e o velho Dodó, acabou ficando famoso por isso! Legal. rsrs!!!

REN@TO S@NTOS disse...

É uma história expetacular, digna de um grande escritor. Parabéns caro Agildo.

Renato Santos
renatoipira.blogspot.com

Lilian Simões disse...

Olha só,quem diria!Dodó é uma celebridade!Agildo você com suas impagáveis crônicas vem através deste blog,eternizando pessoas que em nossa comunidade,se mostram tão simples e que passam por nós as vezes tão despercebidas.Você é acima de tudo um conhecedor da nossa verdadeira cultura.
Abraço,amigão.

Manoel Hito disse...

Maravilhosa esta crônica Agildo.
Você demonstra ter no mais profundo de sua alma o verdadeiro amor por nossa terra e suas histórias.
Seria bom que aqueles que tem o poder na mão tivesse o mesmo sentimento e ai nossa querida terrinha não sofri tanto.

Unknown disse...

Salve, Salve, professor Agildo!!

(ou, para mim, simplesmente, Tio Agildo)

Belíssimo Texto.

E o que mais esperar de algo escrito por você?

Grande abraço, meu tio. Saudades imensas.

Unknown disse...

Sensacional!!!!
Simplesmente, um rico e breve capítulo da história de Ipirá.
É verdade...Vivendo e aprendendo.

Unknown disse...

Sempre bom relembra fatos que marcam a historia da pequena “camisão”.
No meu caso, conhecer historia que realmente, nunca sonharia que um dia se passou na pacata cidade onde eu morro. Fazendo com que eu e muitos outros jovens da mesma conheçamos um pouco mais sobre alguns fatos aqui aconteceram.
Alem de ter uma grande MORAL!
Que nunca devemos subestimar a capacidade das outras pessoas e que ñ devemos julgá-las pelo lugar de onde veio.

Parabéns AGILDO belíssimo trabalho.

Kaíque 3º b

Lucy disse...

Eu ja sabia que existia muita gente talentosa aqui nessa cidade, mas essa de seu Dodó, que com muito talento emocionol o próprio Luíz Gonzaga, e mostro para todos que o lugar dele era tocando zabumba pelo mundo a fora, merece reconhecimento.!!!E o senhor tambem, por ter guardado suas memorias para que gerações futuras pode-se desfrutar do pouco que resta da tradição, da cultura e da sabedoria que tras esse fato tão marcante pra o senhor e para Ipirá.
3° B - LUCINÉA

Lucy disse...

Fala sério, ser colocado em foco pelo propri Gonzaga deve ter cido uma emoção e tanta, mas, mostrar pra esse povo que talento e coragem são virtudes que ele levava além da simplicidade... conserteza o coração foi a mil.
Prof° esse texto é conserteza uma prova da simplicidade de uma terra, a nossa terra, uma amostra da cultura da época; parabéns pelo trabalho bem feito.Seu DODÓ deve se sentir feliz pela belicima homenagem.

Unknown disse...

Só você pra nos mostrar a historia maravilhosa da nossa cidade , mostrar nossas riquezas e valorizá-las coisas que poucos fazem ,parabéns !
Graciella Alencar dos Santos